Ilustração: Nicoletta Ceccoli
Sou um livro de romance miseravelmente mal feito. Tenho marcas nos seios, nas coxas, nos lábios. O corpo todo marcado por letras desconexas. Cheia das suas marcas, farta delas.
Esse tempo todo, um ano e meio, dois 12 de junho, festas em família, arrumação do apartamento, batida do carro, viagens... Duas décadas enfiadas em dezoito meses. Foi tudo uma farsa?
A carne viva, as palavras expostas. Chamaste minha literatura de vagabunda e isso doeu em cada um dos meus duzentos e seis ossos.
Em que ponto entregamos os pontos?
O apartamento desabou, o carro quebrou, o gato fugiu, o leite azedou, nós morremos. Morri primeiro. Cada vez que a gente se olhava, eu me via morta na menina dos seus olhos.
Vaguei como um fantasma, agarrada às roupas recém saídas da secadora; presa ao pé da mesa onde você costumava jantar; dançando na sala, desesperada por atenção. Até que numa noite qualquer, deixei de ser encosto.
Foi aí que você morreu. Morreu aqui, olha sua cova no castanho dos meus olhos.
Quem diria que terminaríamos assim, mortos. Experiências niilistas, egoísmo e fotografias em decomposição.
Entre lágrimas, jurei nunca mais amar ninguém. Nós dois sabemos que a promessa será quebrada quando aparecer o próximo. E ele marcará cada canto do meu corpo, até me fartar. Viveremos décadas em meses, viajaremos, discutiremos política e Kant, faremos planos e dançaremos valsas em festas de casamento.
Sou um livro de romance cujo escritor vive em bloqueio criativo e repete as mesmas cenas, capítulo pós capítulo. Vê?
Agora que você não vive em mim, consegue ver? Enxerga as marcas e os ossos quebrados? Entende porque eu tive que matá-lo naquela noite?
O amor é uma bagunça. O amor é uma merda. O amor é para sempre. O amor não é tudo. O amor rodou até cair tonto, meu bem. Tombamos.