quinta-feira, 12 de julho de 2012

Jazigo


Ilustração: Nicoletta Ceccoli

Sou um livro de romance miseravelmente mal feito. Tenho marcas nos seios, nas coxas, nos lábios. O corpo todo marcado por letras desconexas. Cheia das suas marcas, farta delas.
Esse tempo todo, um ano e meio, dois 12 de junho, festas em família, arrumação do apartamento, batida do carro, viagens... Duas décadas enfiadas em dezoito meses. Foi tudo uma farsa?
A carne viva, as palavras expostas. Chamaste minha literatura de vagabunda e isso doeu em cada um dos meus duzentos e seis ossos.
Em que ponto entregamos os pontos?
O apartamento desabou, o carro quebrou, o gato fugiu, o leite azedou, nós morremos. Morri primeiro. Cada vez que a gente se olhava, eu me via morta na menina dos seus olhos.
Vaguei como um fantasma, agarrada às roupas recém saídas da secadora; presa ao pé da mesa onde você costumava jantar; dançando na sala, desesperada por atenção. Até que numa noite qualquer, deixei de ser encosto.
Foi aí que você morreu. Morreu aqui, olha sua cova no castanho dos meus olhos.
Quem diria que terminaríamos assim, mortos. Experiências niilistas, egoísmo e fotografias em decomposição.
Entre lágrimas, jurei nunca mais amar ninguém. Nós dois sabemos que a promessa será quebrada quando aparecer o próximo. E ele marcará cada canto do meu corpo, até me fartar. Viveremos décadas em meses, viajaremos, discutiremos política e Kant, faremos planos e dançaremos valsas em festas de casamento.
Sou um livro de romance cujo escritor vive em bloqueio criativo e repete as mesmas cenas, capítulo pós capítulo. Vê?
Agora que você não vive em mim, consegue ver? Enxerga as marcas e os ossos quebrados? Entende porque eu tive que matá-lo naquela noite?
O amor é uma bagunça. O amor é uma merda. O amor é para sempre. O amor não é tudo. O amor rodou até cair tonto, meu bem. Tombamos.


Para ler ao som de Shake It Out.

16 comentários:

Renata Boeira disse...

Você escreveu o que eu venho vivendo nos últimos dois meses... linda sua escrita.

Stella disse...

Lindo texto... Também me sinto assim às vezes, "um livro de romance cujo escritor vive em bloqueio criativo e repete as mesmas cenas, capítulo pós capítulo". Quando paro pra pensar a história sempre se repete. Sempre uma promessa quebrada. Sempre uma cova nos olhos. E eu sempre me superando. Adoro as coisas que tu escreve. Abraço.

Anônimo disse...

Estava tudo organizadinho até que o amor apareceu, aí estragou tudo. Resolvemos conversar sobre um monte de coisas boas com o amor, mas ele resolveu brigar por isso.
É horrível, mas é amor.

R. Borges disse...

O amor tomba. Sempre tomba.
Parabéns, moça.
Lindo texto.

Espelho Meu disse...

E o fim de todo amor é uma cova profunda e florida, semeada com lágrimas.
Você me arrepia!

Paolla Milnyczul disse...

Maravilhoso menina! Parabens!!

Paolla

Anônimo disse...

Aplausos!

Vida Comentada disse...

Eu vivenciei cada palavra, em cada vírgula revivi um momento, trouxe a memória alguns suspiros e lágrimas... você consegue dar forma a vida com as palavras, todas em seu devido lugar, narração perfeita! Adorei-te, estará nos meus favoritos.

Beijoca da Jujuba =*

Alicia disse...

Morri aqui "Cada vez que a gente se olhava, eu me via morta na menina dos seus olhos."

to morrida.

de inveja da sua escrita.

SusanaSS disse...

A gente morre em cada um dos duzentos e seis ossos
A gente constrói o novo em meio a uma infinidade de destroços...
O mundo é pequeno pra mim e não é maior que a nossa cama
O amor não morre no fim, respira na água como a criança do disco do Nirvana!

Brunno Lopez disse...

Definir o amor é mais fácil do que definir o abdomen, não?
Ou pelo menos deveria, são tantas teorias escritas que talvez ele devesse ser menos popular do que parece.

Sou meio suspeito pra falar de suas linhas.
O amor que você faz com as metáforas é de bom gosto, dá audiência e ajuda a vender a trilha sonora.

E esse amor que você assassinou ganhou vida a cada leitura.

Henrique disse...

Como disse Seraphicetica, o amor não é para os fracos.

http://seraphicetica.blogspot.com.br/2012/06/amar-nao-e-para-os-fracos.html

Tatiana Kielberman disse...

Palavras sentidas, assimiladas, doloridas e recuperadas...

Tudo num misto que só a Flah consegue fazer e reunir!!

Perfeição...

Beijos, querida!

Unknown disse...

Amor, amor, amor, amor[...]rer.

Adorável texto Mariazinha!

Bruna Benes disse...

lindo, lindo...

Dani Lusa disse...

Li e amei e senti cada palavra. Doeu um pouco. Mas o amor é assim mesmo, às vezes dói. Seja dor por amar ou machucar demais, ou de menos.

Lindo.

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