terça-feira, 31 de julho de 2012

Jornada

Chamaste minha literatura de vagabunda
e isso doeu em cada um dos meus duzentos e seis ossos.


Estou no meio do caminho e as pernas pedem descanso. Os pés doem, sujos de terra, exaustos.
Caminhei tanto depois que nos conhecemos. Mal vejo a menina torta que eu era naquele dia quente de fevereiro.
Era mais gostoso quando você andava comigo. Mesmo à frente, você me estimulava a dar passadas mais largas, aumentando o ritmo para que chegássemos mais cedo.
De repente pisquei os olhos e cadê você?
Estou no meio do caminho e daqui nem dá pra ver o meu destino. Parecia mais simples quando éramos dois rumo ao desconhecido.
Andei tanto e já não há nenhum estímulo. Continuo porque estou no meio do caminho e não dá para parar aqui, nessa maldita estrada de terra onde não passa ninguém.
Será que você se escondeu para me observar ou cansou da minha lentidão e foi na frente? Eu nunca te deixaria para trás, amor. Vem me buscar?
A cada cem passos eu paro e olho ao redor. Não tem cabimento voltar, mas dói tanto seguir em frente. Dói tanto. Doem as pernas, os pés, o âmago, o peito. Doeria meu coração se eu ficasse à vontade para escrever como os velhos poetas.
A cada quilômetro vencido eu penso em você. Ao menos não o vi indo embora. É provável que tentasse alcançá-lo e sabemos que eu jamais conseguiria.
Lembra quando começamos essa jornada? Eu era apenas uma menina mal acostumada e você corria para que eu o alcançasse. Só alcançava porque você deixava.
Sem você a estrada parece mais esburacada, mais tortuosa, mais difícil. Será que a gente se encontra lá na frente?


Para ler ao som de Damien Rice - Delicate.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Bilhete #510





sábado, 21 de julho de 2012

Primeira



A primeira vez que nos vimos uma harpa tocou. Não foram sinos, como sentenciam os escritores românticos. Foram harpas!
Uma estrela cadente cortou o céu, embora fosse dia. Em dez segundos eu disse para mim mesma: Eu o amo. Esse é o cara que vai mastigar a minha alma. Estou fodida. Eu o amo!
Uma menina de 15 anos gritava dentro do meu peito, correndo entre as artérias com uma rede de caçar borboletas. As borboletas tinham pernas e também corriam, e eu sentia que aqui dentro era um quadro do Dali ou filme do Tim Burton porque agora havia você.
A menina, as borboletas, meu sangue... Tudo corria na sua direção, embora eu estivesse parada.
Botões de rosa brotavam das minhas mãos e eu as colocava para trás numa tentativa desesperada de não deixar os espinhos à mostra.
Tudo isso num piscar de olhos, na primeira vez que nos vimos.
O som das pessoas em volta ficou baixinho e eu só ouvia a harpa.
Meu coração não batia freneticamente como era de se esperar. Não. Ele parou. Ficou paradinho enquanto menina e borboletas buscavam desenfreadamente por você.
Aí você se aproximou, beijou minha bochecha e fomos tomar um café. E eu nunca te contei que nos dez primeiros segundos que te vi, eu já era mais sua do que jamais fui minha.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

A História de Jú e Rô


Suponhamos que Romeu e Julieta não tenham morrido. Digamos que as famílias deram o braço a torcer, ganhando um membro ao invés de perder um filho. O que viria depois, meu caro Shakespeare?




Romeu traiu Julieta com uma talzinha qualquer. Descoberto, passou a arrastar-se como um capacho em busca de perdão.
Acontece que Julieta não é Amélia, mas é uma tremenda mulher de verdade.
Com um chega pra lá, desbancou o Montecchio. Descolou um moreno e vestindo jeans, saiu de férias. Foi viver o amor sem dramas.
Não adianta mandar e-mail, muito menos recadinho no Facebook, seu Romeu boboca. Sua garota foi conhecer praias paradisíacas, sem wi-fi e 3G. O último sms foi para Isolda: “Ricardo tem um primo. Pare de perder tempo com caras como o Tristão.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Jazigo


Ilustração: Nicoletta Ceccoli

Sou um livro de romance miseravelmente mal feito. Tenho marcas nos seios, nas coxas, nos lábios. O corpo todo marcado por letras desconexas. Cheia das suas marcas, farta delas.
Esse tempo todo, um ano e meio, dois 12 de junho, festas em família, arrumação do apartamento, batida do carro, viagens... Duas décadas enfiadas em dezoito meses. Foi tudo uma farsa?
A carne viva, as palavras expostas. Chamaste minha literatura de vagabunda e isso doeu em cada um dos meus duzentos e seis ossos.
Em que ponto entregamos os pontos?
O apartamento desabou, o carro quebrou, o gato fugiu, o leite azedou, nós morremos. Morri primeiro. Cada vez que a gente se olhava, eu me via morta na menina dos seus olhos.
Vaguei como um fantasma, agarrada às roupas recém saídas da secadora; presa ao pé da mesa onde você costumava jantar; dançando na sala, desesperada por atenção. Até que numa noite qualquer, deixei de ser encosto.
Foi aí que você morreu. Morreu aqui, olha sua cova no castanho dos meus olhos.
Quem diria que terminaríamos assim, mortos. Experiências niilistas, egoísmo e fotografias em decomposição.
Entre lágrimas, jurei nunca mais amar ninguém. Nós dois sabemos que a promessa será quebrada quando aparecer o próximo. E ele marcará cada canto do meu corpo, até me fartar. Viveremos décadas em meses, viajaremos, discutiremos política e Kant, faremos planos e dançaremos valsas em festas de casamento.
Sou um livro de romance cujo escritor vive em bloqueio criativo e repete as mesmas cenas, capítulo pós capítulo. Vê?
Agora que você não vive em mim, consegue ver? Enxerga as marcas e os ossos quebrados? Entende porque eu tive que matá-lo naquela noite?
O amor é uma bagunça. O amor é uma merda. O amor é para sempre. O amor não é tudo. O amor rodou até cair tonto, meu bem. Tombamos.


Para ler ao som de Shake It Out.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Coleção


Há quem colecione pedras, figurinhas e moedas.
Eu coleciono dramas.


Ilustração: Nicoletta Ceccoli

Era craque na taxidermia de sentimentos. Quando o amor morria, empalhava e usava como enfeite. Já tinha cinco ou seis adornando a sala de estar.

Não lembrava com exatidão como começara a estranha coleção. Simplesmente cansou de abrir covas que estragavam a grama do jardim.

Muitos estranhavam, era desconfortável encarar aqueles amores de olhos esbugalhados decorando o ambiente. Pareciam vivos, observando o dono brincar com o amor atual.

A poeira e o desgaste denunciavam a idade de um dos enfeites. Com certeza era o mais velho, pendurado há tantos anos que a parede já tinha sua marca. Qual seria a causa do óbito?

Observando um a um dos amores que pendiam das paredes, dava certa pena daqueles sentimentos podados prematuramente. Os mais recentes quase respiravam, tamanha a perfeição do trabalho executado.

Alheio ao horror causado por sua arte, o pobre rapaz sentia-se realizado com as visitas boquiabertas. Com o tempo, passou a escolher relações pensando no fim. Quais seriam mais fáceis de empalhar?

Em poucos meses a coleção dobrara e ao final de dois anos, faltavam paredes para tantos amores.

Quando o assunto é o final de uma relação, há quem chore e fique de luto. E há quem nunca mais consiga se apegar a alguém.